Se um investidor da Google ou da Meta descobrisse que a empresa dispensou todos os seus programadores, ele ficaria otimista em relação ao porvir da companhia? Provavelmente não. O Bitcoin, ainda que não represente uma ação nem uma empresa de tecnologia, também necessita de desenvolvimento contínuo para se manter.
A rede pode dar a impressão de ser estável: blocos continuam sendo minerados, transações continuam sendo validadas. Entretanto, por trás dessa sensação de solidez, existe um aspecto frágil e pouco mencionado: quem está por trás da manutenção do software?
Antes de ser considerada uma moeda, um ativo financeiro ou uma reserva de valor, o Bitcoin é visto como um protocolo, um conjunto de normas que possibilita a comunicação segura entre milhares de computadores, os nós. Esse código precisa ser criado, analisado e atualizado. Sem esse processo, ele se torna ultrapassado, e todas as promessas de descentralização, resistência à censura e autonomia financeira desaparecem.
Muitas pessoas acreditam que o Bitcoin “se sustenta sozinho”, porém até mesmo os aspectos ocultos da rede passam por grandes reformulações para que ela continue veloz, segura e preparada para o futuro.
Depois de Satoshi Nakamoto, a base de dados utilizada para armazenar o estado da rede foi trocada por um sistema mais ágil e confiável, o código de rede foi modificado para agilizar a propagação de blocos e diminuir o consumo de largura de banda, a sincronização de novos nós se tornou mais veloz e segura, e vulnerabilidades foram removidas e substituídas por bibliotecas criptográficas otimizadas.
Toda essa evolução ocorreu longe dos refletores, porém sem esse trabalho nos bastidores, o Bitcoin teria enfrentado problemas ou falhas há anos.
Quem garante a integridade do código do Bitcoin?
As vulnerabilidades recentemente descobertas no Bitcoin Core, desde ataques simples que sobrecarregam os nós até questões mais complexas envolvendo a propagação de blocos, evidenciam que o Bitcoin continua operante graças aos esforços de observação, teste e correção.
O teste de falhas, testes de unidade e de integração, monitoramento descentralizado, e ferramentas como o peer-observer representam a vanguarda dessa defesa. Sem tais práticas, ataques como addr flooding, netsplits ou mensagens adulteradas poderiam passar despercebidos até impactarem a rede em larga escala.
Cada CVE corrigida comprova que o Bitcoin se mantém ativo não por inércia, mas devido ao constante trabalho dos programadores que testam, monitoram e aprimoram o protocolo.
Além disso, existem desenvolvedores que investigam fronteiras da pesquisa, experimentando e elaborando soluções para desafios que ainda nem surgiram. Alguns estão explorando maneiras de dimensionar o modelo de UTXO para bilhões de usuários sem comprometer a descentralização, outros buscam formas de permitir que um nó completo rode em dispositivos cada vez menores, mais econômicos e acessíveis, e há ainda os que projetam algoritmos de assinatura resistentes a computadores quânticos.
Outras frentes de pesquisa envolvem a melhora da privacidade sem prejudicar a auditabilidade, a otimização da propagação de blocos e transações em redes instáveis, e a criação de novas linguagens ou estruturas de script que ampliem as possibilidades de construção sobre o Bitcoin sem criar vulnerabilidades de segurança.
Essa tarefa requer tanto uma visão de longo prazo quanto um profundo conhecimento técnico, garantindo assim que o Bitcoin não apenas sobreviva ao momento presente, mas esteja preparado para os desafios e oportunidades das próximas décadas.
Muitas pessoas repetem em suas análises de investimento ou defesas apaixonadas do Bitcoin que ele é de código aberto, auditável, e que qualquer indivíduo pode revisar o código e compreender exatamente o que está ocorrendo.
Quantos de vocês de fato fizeram isso? Conhecem alguém que tenha? A realidade é que estamos diante de um dilema comum: todos presumem que “muita gente” está monitorando a rede, quando, na prática, boa parte desse esforço é realizado em um Raspberry Pi sobre a mesa de um jovem autodidata na casa dos vinte anos.
É como naquele meme do xkdc que menciona como toda a infraestrutura moderna da internet depende de uma biblioteca de código aberto mantida por um indivíduo aleatório no Nebraska desde 2003. Será que vamos permitir que o mesmo ocorra com o Bitcoin?

Um apelo à ação
A Meta tem uma capitalização de mercado semelhante à do Bitcoin e emprega cerca de 20 mil programadores. Por outro lado, o Bitcoin, com uma capitalização equivalente, conta aproximadamente com 40 programadores ativos.
Muitos destes profissionais dependem de bolsas temporárias ou atuam de forma voluntária, sem a segurança proporcionada por empregos estáveis. Alguns poderiam auferir salários significativamente mais altos em empresas de tecnologia, porém optam por permanecer no Bitcoin por convicção.
Diferentemente de outros projetos de software de código aberto bem-sucedidos, o Bitcoin não possui uma empresa fundadora, uma fundação com um grande orçamento ou um tesouro financeiro substancial.
Outras blockchains arrecadaram centenas de milhões de dólares em ICOs, obtiveram grandes rodadas de investimento de capital de risco e estabeleceram fundações que empregam dezenas de desenvolvedores com salários competitivos. No Bitcoin, essa estrutura não existe. Se a comunidade não fornecer financiamento, ninguém mais o fará.
Apesar de existirem organizações dedicadas a angariar recursos e financiar o trabalho dos programadores, como o MIT Digital Currency Initiative, Chaincode Labs, Brink, LocalHost, OpenSats e Spiral, a maioria das doações provém de um grupo muito limitado de pessoas e empresas.
A Vinteum é uma dessas organizações, focando em apoiar programadores no Brasil e na América Latina, financiada por apoiadores como Wences Casares, John Pfeffer, Sebastian Serrano, e por instituições como OKX, Human Rights Foundation, Btrust e OpenSats.
Até o momento, não contamos com doadores relevantes no Brasil. Grandes exchanges, empresas do ecossistema e early adopters que se beneficiaram com o Bitcoin precisam compreender que o valor que acumularam somente se sustentará mediante investimentos contínuos na segurança e na evolução da rede. Sem essa base técnica sólida, não há segurança, não há confiança e, a longo prazo, não há valorização sustentável.
Sobre o autor
Lucas Ferreira é o criador da Vinteum, uma organização sem fins lucrativos dedicada à instrução e financiamento de programadores de código aberto de Bitcoin no Brasil e em outras nações. Ele também organiza a Satsconf, a maior conferência de Bitcoin da América Latina. Com passagem pela Lightning Labs, Lucas atua na interseção entre o desenvolvimento do protocolo do Bitcoin, educação e fortalecimento da comunidade.
Fonte: Portal do Bitcoin